"Tudo acontece por uma razão" ou "nada acontece por acaso", você certamente já ouviu. A palavra "razão" nesse contexto, não possui o significado de "causa", mas de propósito. A ideia não é apenas enraizada na cultura moderna, mas esteve presente em praticamente todas as civilizações de todas as épocas do mundo. No Evangelho, o conceito de propósito é amplamente explorado em todos os aspectos. Deus nos criou por uma razão, criou o Plano de Salvação por uma razão, nos enviou a terra por uma razão, enviou Seu Filho como sacrifício expiatório por uma razão e possui muitas outras razões ou propósitos para operar da maneira que opera. O problema, entretanto, está no fato de que abusar do conceito de propósito, atribuindo a tudo o que acontece no mundo ou em nossas vidas, tende a gerar muito mais problemas do que soluções.
É compreensível o motivo que tráz tanta popularidade a tal conceito. Como explicado pelo escritor e psicólogo Paul Thagard:
"Para algumas pessoas, pensar desta maneira torna mais fácil lidar com problemas no relacionamento, crises financeiras, doenças, morte e até mesmo desastres naturais como terremotos. Pode ser perturbador pensar que coisas ruins acontecem meramente devido ao acaso ou acidente. Mas elas acontecem."[1]
A ideia de que tudo acontece por uma razão é o formato moderno de uma frase velha e conhecida, "foi a vontade de Deus." É aqui que o problema ganha o potencial de danificar verdades objetivas do Evangelho. O conceito tende a atribuir qualquer evento, bom ou ruim, a parte de um plano divino orquestrado por Deus para que algo específico seja alcançado, como se Deus mantivesse Sua mão estendida sobre tudo e todos a cada segundo, interferindo a cada esquina e escolha. Nada poderia estar mais longe da realidade do que isso.
O objetivo é normalmente aliviar a dor de um evento trágico ou relacionar diferentes eventos que possuem relação causual, mas que não possuem nenhuma conexão espiritual ou de propósito entre si. Por exemplo, em diversas ocasiões ouví pessoas afirmarem que o fim de um relacionamento permitiu a elas aprenderem lições importantes que levaram consigo para a vida e que eventualmente tiveram um papel fundamental para encontrarem o companheiro (a) que realmente queriam. Nesses casos, era comum que tais pessoas vissem o rompimento do relacionamento anterior como algo que "aconteceu por um propósito", o de fazê-los progredir, quando o progresso é quase sempre uma consequência natural da escolha que fazemos em resposta a um evento, sem que precisemos apelar para um plano divino; o de atribuir significado ao caos e eventos aleatórios da vida e arbítrio.
Consegue imaginar uma mãe assistindo seu filho através de um vidro, lutando pela vida após ser atropelado por um motorista alcolizado, ouvindo que aquilo "aconteceu por uma razão"? Ou às milhões de crianças que diariamente sobrevivem à condições sub-humanas, sem água potável ou alimentação. Será que existe um propósito para que elas vivam de tal forma?
Um exemplo ainda mais claro está na história de vida de Elizabeth Smart, membro da Igreja em Utah que foi sequestrada e estuprada por 9 meses consecutivos, antes de ser resgatada e trazida de volta à sua família. Elizabeth Smart e sua família viveram por nove meses o inferno na terra. Hoje, Elizabeth ajuda através de sua fundação milhares de crianças vítimas de abuso a serem curadas dos efeitos traumáticos que tais experiências causam. Seria extrema tolice sugerir que Elizabeth foi sequestrada e abusada para cumprir um propósito maior de ajudar crianças que viveram experiências semelhantes. Consegue imaginar um Deus de amor cujo plano "divino" requer destruir a infância de uma criança inocente? Nesse caso, o agressor não seria um agente do mal, mas peça essencial do plano. Pensar dessa forma é sugerir que o próprio Deus é o autor de todo o mal que acontece no mundo, com ou sem propósito.
Felizmente, o Evangelho de Jesus Cristo não funciona assim e embora o plano de Deus para a vida mortal 'permita' que tragédias aconteçam, isso não quer dizer que Ele ativamente as causou. Para o bem ou para o mal, as escrituras ensinam que "o tempo e o acaso sobrevém a todos." (Eclesiastes 9:11) A mortalidade é tão linda e a mortalidade é tão difícil. Criar propósito é muito maior e mais significativo do que apenas encontrá-lo. Nem tudo acontece por uma razão ou propósito, mas de tudo podemos extrair lições que abençoarão nossas vidas e de outros ao nosso redor.
Referências
[1] Thagard, Paul. Does Everything Happen for a Reason. Psychology Today. Feb 2010.
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